sexta-feira, 18 de março de 2011

Variações sobre o gato Bonifácio, "personagem" de Os Maias

Sentia o pó nas minhas patas. O vento pintava os mosaicos do pátio com folhas de cores quentes e caducas. A triste melancolia daquela quinta assobiava silêncios através das janelas velhas e destroçadas.
Ver aquele cenário fazia com que não quisesse viver mais nove vidas.
Fui entrando através daquelas portas nas salas que, agora, me pareciam vazias, despidas, gigantescas. Os cortinados de veludo vermelho dançavam as valsas das almas já desaparecidas. As cadeiras de madeira maciça, onde costumava amolar as minhas unhas, enchiam-se, agora, de um manto branco feito artesanalmente de pó velho e teias de aranha. Das carpetes chegavam odores de outros gatos que vieram, certamente, à procura de ratos também eles sumidos. Os vultos chamavam por mim sentados nos degraus da escada. Não conseguia perceber de quem eram. A minha vista já estava cansada. Prossegui através daquela passadeira vermelha com riscas douradas de tecido inglês, eu acho. Já não me lembro bem. Recordo-me de ter sido elogiada como a mais cara, bela e original da mercadoria trazida de terras londrinas. As minhas patas redondas, idosas e calejadas ficavam desenhadas no fundo encarnado e empoeirado da carpete.
Sentei-me na varanda principal. Como eu gostava daquela varanda! Era antiga, romântica, bela, segura. Era nela que passava as noites de Janeiro e Fevereiro enquanto observava as madamesde cauda escovada e arrebitada que desfilavam estupendamente pelos muros velhos e floridos daquelas quintarolas e quintais, fazendo as delícias dos olhos de outros D. Bonifácios de Calatrava como eu.
Vista de cima aquela vivenda era ainda mais sonâmbula. As árvores adormecidas apoiavam os seus pescoços velhos e secos nas telhas despedaçadas da casa, destapando seus pés calçados sob as lajes feridas e golpeadas do pátio. As roseiras abriam os braços aos céus zangados e cinzentos, trepando pelas paredes descascadas de cor.
Voltei-me para dentro. Entrei no salão. Parecia uma sala fantasma, acabada de sair de um romance trágico como aqueles que o dono me lia e queria que eu escutasse, mesmo que fosse com um olho aberto e outro conquistado por um sono aterrador. Junto à chaminé lá estava a minha alcofa. O tecido roxo vivo estava tão velho quanto eu. Também lhe tinham crescido alguns cabelos brancos. Que confortável era aquela alcofa! Quando me ofereceram aquele tecido de bom descanso, nele descobri gravado o meu nome, Bonifácio. Acho que o dono sempre entendeu o ar nada satisfeito que eu fazia quando me chamavam pelo nome. Por isso tentou emendar o seu erro ao longo dos anos.
A luz entrava agora pelas cortinas esfarrapadas, anunciando a sua demorada extinção. Deitei-me, por fim, na minha alcofa. Pressenti algo à minha volta. Vozes. Movimentos. Energias. Não me apeteceu abrir os olhos. Tudo estava novo. A sala nova, nobre, limpa e bela que conhecera voltara. Levantei-me da alcofa. Dirigi-me, como sempre, à cozinha, mas desta vez de uma forma diferente. Estava a flutuar! Eu estava a flutuar! Tudo à minha volta estava ressuscitado. Eu estava um D. Bonifácio de Calatrava de novo. As madames chamavam-me lá fora. Os pássaros já não gozavam comigo e, ao fundo da sala, dois olhos acompanhados de uma barba sorridente admiravam-me ao longe.
João Monteiro, 11.º B

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