terça-feira, 2 de dezembro de 2008

O Direito de Saltar Páginas


A electricidade vertiginosa do pensamento escorre-lhe pela ponta dos dedos enquanto folheia. Um personagem às portas da morte e a pressa cega-lhe a obrigação de ler ininterruptamente. A leitura enfeitiçada despreza o cheiro do mar, as cores da paisagem e os infinitos horizontes enumerados. Adiante, adiante…Os sons de um quase fim-do-mundo quebram o silêncio da mente, agitada; camuflam o virar frenético das páginas. O encanto em estilo de torpor de um quase lá, quase lá. Saltar mais algumas. Mais mar. Outro dos infinitos horizontes. O chato. Os dois chatos. Andando, andando. Saltando mais. A revolta da urgência arranca-lhe a percepção de ordem e quebra a quietude do livro. O poder arrogante do enredo não o deixa continuar. Uma página folheada, quase quase, outra pagina, oh!, outra ainda e a descoberta por fazer, já feita, entreabriu nova urgência. Saltem-se várias de uma só vez. Porque o herói prestes a morrer, o reencontro prestes a fazer-se, a intriga quase divulgada imploram pelo fim, um quase fim. As que ficaram para trás serão decifradas mais tarde [talvez nunca], quando a electricidade tiver sugado irreversivelmente o desassossego, quando a curiosidade se tiver afogado no gosto prazenteiro mas calmo da leitura, mais uma vez, e restem apenas sobras do desejo sereno de continuar a ler, sem saltá-las. Até que tudo recomeça. E o quase-quase do só-mais-esta volta a ser tão legítimo como antes. E saltam-se mais páginas.
Helena Couto, 11ºA

1 comentário:

8ºE disse...

Como sempre, excelente! Consegue transmitir perfeitamente a "sofreguidão", a "voracidade" do leitor em desvendar o fim da história.
A linguagem é poética, literária... admirável!