quinta-feira, 27 de maio de 2010

A minha casa é a rua



"Pela clareira que se abria, o vagabundo, de mãos nos bolsos das calças, vinha, despreocupadamente, avenida abaixo."
Este vagabundo tinha, estranhamente, um ar feliz, um sorriso na cara. A vida dele era sempre o mesmo, acordava cedinho com o barulho dos carros que passavam por perto, levantava-se e caminhava todo o dia. Passava dezenas de vezes naquela avenida e descia-a sempre da mesma maneira, despreocupadamente e de mãos nos bolsos das calças que, tal como ele, estavam velhas e gastas. No fim do dia lá ia ele para o seu colchão que tinha achado há um tempo no lixo ali por perto.
Um dia esta sua rotina mudou para sempre. Quando estava prestes a adormecer chegaram perto do seu colchão dois jovens, bem falantes. Conversaram algum tempo, uma conversa agradável. O vagabundo contou-lhes como gostava de ser livre, como era fascinante caminhar pela cidade todo o dia, encontrando sempre coisas novas e maravilhosas. Os rapazes mostraram-lhe como era bom ter uma casa, uma família, como era bom ser amado. Despediram-se e disseram que voltariam. Voltaram todos os dias que podiam. Criaram uma amizade com o velhote. Um dia perguntaram-lhe:
- Lembras-te da nossa primeira conversa? Nunca pensaste sair da rua, ter uma casa e uma família?
O velhote respirou fundo e disse de uma forma profunda:
- A minha casa é a rua, é o mundo. Não troco esta casas luxuosa por nada. A minha família são todas as pessoas que passeiam pelas ruas, que passam por mim e me dizem "Olá", são todos os animais, bichos que vivem à minha volta. Amo tudo isto, e acredito que o mundo me ama, por mais fome que eu passe e por muito mal que eu durma. E amo-vos a vocês porque são meus amigos, animam a minha vida desanimada e entraram na minha casa sem preconceito, compreendendo o meu lado.

Gonçalo Inácio, 10.º B

"Pela clareira que se abria, o vagabundo, de mãos nos bolsos das calças, vinha, despreocupadamente, avenida abaixo."
Vinha, apesar de tudo, alegre, talvez vítima do veneno da alegria que é o vinho. Os bolsos vinham rotos, os pés descalços, que caminhavam levemente, como se a cada passo que dava algo de bom acontecesse.
Aproximei-me, receoso, pois não o queria fazer. Mas os pés traíram-me, talvez movidos pela curiosidade. Perguntei-lhe como se chamava. A resposta dada soou-me estranho: "Não sei". O sorriso nos lábios do homem, aquela felicidade intensa fez-me esquecer o seu aspecto, e por momentos senti que ele era realmente feliz. Mas este sentimento fez-me ficar à conversa.
Tentei conversar e conhecê-lo. O homem movia-se rapidamente, sem conseguir parar. Ria-se de tudo, dir-se-ia que estava louco. Até que lhe fiz a derradeira pergunta: "Não te sentes infeliz por viveres assim?"
O sorriso nos lábios do homem evaporou-se imediatamente, como se eu o tivesse arrancado. Parou. Olhou-me com raiva e depois desdém. Pedi-lhe desculpa, caso o tivesse ofendido. Ele recomeçou a sua caminhada, e soltou duras palavras, sem um traço de alegria: "Vocês não sabem o que fazem". Percebi que não estava louco quanto mais embriagado. Nesse momento, algo me fez querer conhecê-lo mais a ele, e à sua história. Mas ele afastou-me.
Na noite seguinte, passei novamente pelo local onde o encontrara. Olhei, procurei. Vi dezenas de sem-abrigo, deitados no chão. Até que olhei para o cimo da avenida e o reencontrei, alegre, descalço, a assobiar uma canção há muito esquecida. Falei com ele e ele falou comigo. Passei a ir ter com ele todas as noites e consegui conquistar a sua confiança.
Por muito que as pessoas o vissem como mais um vagabundo, um pedinte, eu via-o como um homem, com uma história marcante por detrás.
Uma noite pedi-lhe que me contasse a sua história. Mais uma vez, o seu sorriso se desvaneceu, e começou a falar com seriedade. Chamava-se Daniel, tinha 65 anos e fora, outrora, deputado na Assembleia da República. Não tinha filhos e um dia deixara tudo, quando se desiludira com a política, que ele pensara ser um trabalho nobre. Um dia viu um sem-abrigo na rua, que, como ele, também tinha tido tudo, e disse-lhe: "Não sabes o que perdes". Desiludido, sentiu-se mal consigo próprio, e instalou-se na avenida. Desde então andava feliz.
Ontem, enquanto estava sentado comigo, deram-lhe uma esmola. Senti-me envergonhado por, tal como a pessoa que lhe dera a moeda, também ter pensado que ele necessitava de algo, quando, afinal, tinha tudo.
Ana Saltão, 10.º B

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