domingo, 26 de outubro de 2008

PA-LA-VRAS


Se um dia se me acabarem as palavras, acaba-se-me a mente. Não sou eu. Não sou mais pessoa. E as palavras de outrem jamais restituirão o eu que nunca o foi e nunca o é sem as minhas palavras. As palavras conduzem-me o pensamento, desenvolvem-me o intelecto, provam-se a condenar-me o espírito e atrevem-se a alegrar-me a razão. A razão que não há, nesse dia sem palavras. Mil e uma [e outras tantas] pontes se quebrarão, porque as palavras que me ligavam ao mundo não poderão mais suportar a alma. Fosse a alma capaz de ser expressa sem palavras, e sem conceitos por trás delas, e estas linhas não seriam escritas. A minha História fez-se em palavras, e os meus antepassados fizeram-na em palavras. Fiz e faço História através de palavras e as palavras fizeram-se da História.
Um cosmos de pessoas, relações e conversa impele-nos a comunicar e, adicionalmente, discorrer sobre tudo isso e tudo o resto [ou será o pensamento primordial e é o falatório que se lhe segue?]. Qualquer uma das opções implicará as palavras, que não são mais que absolutamente nada sem conceitos. Chega então a altura de admitir que estamos presos num dos ciclos mais viciosos. As palavras demandam conceitos, que por sua vez não nascem sem palavras. A concepção, a ideia, a imagem atribuída a cada palavra dão-lhe vida e, de cada vez que novo conceito lhe embutido, ganha novo respirar. De modo que a História se vai refazendo, porque na verdade as palavras se refazem com ela. Actualizando palavras, actualizam-se artes, sentimentos, histórias, respirares. Actualizamos o que foi e mesmo assim envelhecemos o que virá. Uma mista combinação de tudo aquilo que, de facto, nos habituámos a usar desde que somos nós. Porque o homem não foi Homem sem palavras; durante milhares de anos que não o foi. E continua sem o ser. E o que gira em seu torno segue-lhe os passos e não consegue existir sem elas. A História sussurrou baixinho à Ciência, que rumorejou à Matemática, segredando à Tecnologia. A Economia escutou e murmurou-o à Língua Inglesa. Os ventos passaram pelos franceses, os alemães, os vietnamitas, os venezuelanos; e a crua verdade chegou-me em português – a certeza de que nenhum deles era capaz de viver sem elas. E assim o estudo de todos eles implorava pelas letras. As letras em palavras. E voltam-se então a actualizar os significados. E novamente as artes, os sentimentos e os respirares. Mil respirares, equivalentes a mil personas. É verdade, crê-se que as palavras são multifacetadas e adquirem uma nova personalidade [individualidade, admitamos] de cada vez que são escritas, ou faladas. E mais uma… E mais uma. Outra ainda. Os contextos alteram-lhes a sensibilidade, a frieza, a realidade. E uma acepção antes bonita apodrece com a pressa do Sol quando se põe.
E mesmo assim queremo-las só por serem. Amamo-las por não sabermos existir sem elas. Sujeitamo-nos à dependência que adoramos porque são palavras.


Helena Couto, 11ºA

4 comentários:

8ºE disse...

"Actualizamos o que foi e mesmo assim envelhecemos o que virá."
Esta expressão tão bonita capta perfeitamente a constante evolução de uma língua.
Muitos, muitos parabéns por este texto impressionantemente e "arrepiantemente" profundo e bem escrito.

Valentino Cunha disse...

concordo aqui com a carla maria e ainda quero referir que um texto destes so pode vir de uma aluna eximia que, decerto, é um dos orgulhos da turma. grande lena, grande texto.

Unknown disse...

Apesar de não conhecer pessoalmente a escritora deste artigo, gostaria de deixar neste espaço um elogio pessoal à forma como este texto está escrito. Muitos parabéns! Continue assim pois certamente com as suas palavras irá enriquecer um pouco mais a cultura deste país.

Unknown disse...

Em Hamlet, de Shakespeare, a determinada altura, encontramos a seguinte passagem:
"-Que liseis vós, senhor?
-Palavras, palavras, palavras."
Cara aluna, as palavras que li são "pa-la-vras" não das que o vento leva, mas palavras que batem, invadem o coração e deixam marcas para todo o sempre!
Mais uma vez, muitos parabéns!
Adorei!